Anabela Reis

Julgar é um alívio imediato. Mas e depois?

Julgar é rápido. Julgar é leve — para quem julga.

Julgar dá estatuto. Dá posição. Dá um lugar de cima.

Julgar é o exercício favorito de quem não aguenta olhar para dentro.

Condenar o outro distrai da culpa que não quer nome.

Aponta-se o dedo para não se mostrar a ferida.

Vivemos numa sociedade viciada em diagnóstico moral instantâneo.

Uma sociedade que confunde opinião com ética, justiça com escárnio, coragem com exposição.

Vivemos rodeados de tribunais invisíveis — mas reais.

Públicos, permanentes, sem direito a defesa.

Tudo se comenta. Tudo se grava. Tudo se transforma em espectáculo.

Os julgamentos não nascem no silêncio do pensamento crítico,

mas no ruído voraz da urgência em parecer certo, limpo, melhor.

Não há tempo para escutar. Não há espaço para entender.

Só há o disparo — rápido, seco, certeiro.

Porque julgar dá poder.

Poder de excluir, de nomear, de simplificar aquilo que é complexo, humano, vivo.

Dá o conforto ilusório de uma verdade limpa.

Mas a vida — essa vida real de carne, suor, trauma e amor —

nunca é limpa. Nunca é só uma coisa.

Na clínica, vejo pessoas esmagadas por condenações silenciosas.

“Não foste boa mãe.”

“Não lutaste o suficiente.”

“Devias estar grata.”

“Se calasses a tua dor, tudo era mais fácil para os outros.”

Os julgamentos colam-se à pele como etiquetas queimadas a ferro.

São heranças.

São mecanismos de sobrevivência.

São formas de não enlouquecer com a liberdade dos outros.

Porque há quem não suporte ver alguém a viver o que nunca teve coragem de escolher.

E então julga-se.

Julga-se a mulher que deixou o marido.

Julga-se o homem que chora.

Julga-se a mãe que grita.

Julga-se o corpo fora da norma.

Julga-se a lentidão.

Julga-se a diferença.

E ao julgar, sente-se uma faísca de pureza.

Sente-se o alívio: “eu não sou assim”.

Mas e depois?

Depois, sobra um vazio.

Porque o julgamento é um prazer breve que cobra caro.

Empobrece o vínculo.

Afasta.

Faz com que nos fechemos ainda mais nos nossos casulos de medo e performance.

O julgamento não transforma.

O julgamento paralisa.

Transformar, sim — isso exige presença.

Exige escuta.

Exige olhar para além do erro.

Exige saber estar com a ambiguidade sem a querer triturar com certezas.

E isso dá trabalho.

Dói.

Exige-nos inteiros. Sem filtro.

A Psicologia não é um conjunto de sentenças.

A Terapia não é um púlpito moral.

A Neurociência não nos oferece desculpas — oferece-nos entendimento.

Ajuda-nos a ver o sistema, a história, o contexto, o medo.

Ajuda-nos a perceber que ninguém nasce mau,

mas muita gente cresce ferida, esquecida, desconectada.

E quando ajudamos alguém a transformar a sobrecarga em clareza,

não o fazemos com julgamentos,

mas com chão, com tempo, com verdade e com ciência.

Este é o trabalho.

Não é bonito para mostrar.

É fundo, suado, imperfeito.

Mas é real.

Julgar é o caminho fácil.

Mas não é o caminho certo.

Não se constrói saúde emocional a cortar cabeças —

constrói-se a criar pontes.

Mesmo que tremam.

Mesmo que desabem.

Mesmo que doa.

Não viemos para ser juízes. Viemos para ser humanos.

E isso… isso é bem mais difícil.

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