
O que se Apagou em Nós?
segunda-feira, 28 de abril. o dia em que tudo parou menos a ansiedade.
Não foi só a internet que caiu.
Foi a ilusão de controlo. A frágil teia do “sempre disponível”.
Foi o chão dos gestores, o fôlego dos técnicos, a margem de erro das mães, a paciência dos filhos, o pulso dos negócios.
Foi a nossa tolerância à incerteza.
Apagou-se a máquina — e com ela, a parte de nós que acredita que, se estivermos sempre ligados, estamos a fazer bem.
Mas o que se apagou, na verdade?
O servidor caiu. As apps foram abaixo. O país estagnou por horas.
Mas o maior colapso foi invisível — emocional, mental, relacional.
Recebi mensagens em pânico.
Líderes desorientados, incapazes de funcionar sem sistema.
Empresas a suspender reuniões, deadlines, decisões.
Gente a sentir-se culpada por não produzir durante um colapso sistémico.
É disso que estamos a falar.
Da total dependência de infraestruturas que não controlamos.
Do esvaziamento progressivo da autonomia interna.
De como o mundo profissional, mesmo o mais humano na retórica, ainda mede o valor de alguém pelo seu rendimento contínuo.
Mesmo quando não há luz.
Desligar devia ser um direito. Não um colapso.
O que o apagão de segunda revelou — mais do que a falibilidade de um fornecedor de tecnologia — foi a fragilidade emocional em que vivemos.
Ninguém sabia o que fazer com o silêncio.
Com a ausência de notificações.
Com a pausa forçada.
Com o tempo que sobra quando não há sistema para preencher o vazio.
Em vez de alívio, houve angústia.
Em vez de pausa, houve pressa.
Em vez de reflexão, houve pânico.
Porque a nossa relação com o trabalho já não é uma relação.
É uma fusão. Uma simbiose patológica.
Nas empresas, o que se viu foi o que se esconde.
O apagão tornou visível o invisível:
— processos mal definidos
— equipas sem treino para a imprevisibilidade
— líderes dependentes de controlo e microgestão
— ausência de protocolos emocionais para lidar com o inesperado
Quantas empresas usaram aquele tempo para cuidar?
Para perguntar “como estás?” em vez de “quando volta o sistema?”
Quantas aproveitaram para parar e pensar, em vez de pressionar?
Poucas.
Porque não temos literacia emocional.
Temos KPIs.
Temos dashboards.
Temos urgência. Mas não temos presença.
Como psicoterapeuta, oiço as fissuras do sistema pelo corpo dos que nele habitam.
O corpo não mente.
O burnout não espera por blackout para se anunciar.
A ansiedade que explodiu na segunda já estava ali — latente, negada, silenciada.
As pessoas estão exaustas.
As lideranças estão perdidas.
O sistema está doente e insiste em chamar saúde à adaptação ao insustentável.
O apagão foi apenas um espelho.
Cru, breve, impiedoso.
E agora? Reiniciar? Repetir? Reformar?
Reset&Restart não pode ser só o nome de uma newsletter.
Tem de ser uma ética.
Uma escolha.
Um novo contrato entre o trabalho e a saúde mental.
Na segunda-feira, tivemos uma oportunidade.
Alguns tentaram agarrá-la. Outros preferiram esperar que tudo voltasse ao “normal”.
Mas o normal já não serve.
A pergunta, agora, é:
vais mesmo voltar a ligar-te a tudo,
sem antes te ligares a ti?
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